Lawrence da Arábia
O deserto tem seus desafios. E riscos. E pequenas mortes. Mil serpentes. E pássaros do silêncio. Crepúsculo e solidão. Nada mais poderoso e drástico do que as areias do deserto. Nada mais árduo e sombrio do que vagar em seus labirintos. Tema absoluto. Metáfora e Miragem. E um gesto para perder-se. E outro, para encontrar-se. Assim: perder-se para encontrar-se. Eis a razão de não poucas viagens dos que enfrentaram sede e solidão. Como a de Richard Burton, em sua “Peregrinação para Medina e Meca”, tão perigosa, para ver de perto, não-muçulmano, o centro do mundo, a Kaaba. Como a viagem de Wilfred Thesiger, ao atravessar as “Areias da Arábia”, numa das mais duras empresas, jamais realizadas por um ocidental. Como a que enfrentou Lawrence da Arábia, em sua fabulosa aventura, ao reviver em chave épica, as grandes solidões arenosas, pertencentes, até o fim da Primeira Guerra, ao moribundo império otomano, retratada em “Os sete pilares da sabedoria”. Essa brilhante ciropédia dos Anos Vinte, herdeira dos sonhos de Byron, Moore e Southey, é um dos grandes momentos da literatura de viagem, guerra e biografia, que marcou um Churchill e um E.M. Foster.
Como disse Fernando Monteiro, em breve e percuciente ensaio, uma das questões centrais da vida desse estrategista, viajante e escritor, que foi Lawrence, consiste numa profunda sede de autoconhecimento. Um homem torturado em sua indefinível identidade, buscada além das torres londrinas, por entre minaretes, a praticar o árabe dos beduínos, nervos e sonhos, para além da ideologia dominante. Lawrence desespera da própria identidade. E busca, entre os grandes valores tribais, uma força nova, que lhe desse algo que não sabia, mas com que sonhava. Alguma certeza. Alguma direção. Sob o céu do Saara, e do Hejaz, de Acaba, e Jericó. Das solidões de pedra e areia. O deserto avulta como drama. Autoconhecimento. Miragem de si mesmo e do outro. O combate de uma identidade complexa. Incerta. Flutuante.
“Os sete pilares da sabedoria” traduz uma vontade férrea, um mundo de coragem e adesão, como se acompanhássemos uma nova passagem das Termópilas, e não poucas diferenças culturais, que disseminavam vida e morte naquelas paragens. A ética severa e alta de não poucas tribos, os múltiplos encontros no deserto, a poesia, cafés com cardamomo, tudo isso aparece nas páginas de fogo de Al-Urens, como era chamado Lawrence entre os beduínos.
Depois de grandes vitórias, a entrada em Damasco, sua derradeira Meca, é não apenas o auge da aventura, mas, ao mesmo tempo, o início de tempos escuros para ele e os árabes, cada qual em seu destino, com o regresso a Londres, com as dúvidas atrozes, a impedir-lhe a vida, com a expulsão do rei Faissal da Síria, com as garras da Franca e da Inglaterra, sobre os protetorados. Sinais terríveis de uma era. Para Lawrence, anfíbio das areias da Arábia e da Ilhas Britânicas, começava uma vida de memória. Apenas. Um exílio dos extremos.
E, contudo, antes mesmo de chegar à Síria, reconhece Palestina como “terra de leite e mel para os que viveram 40 anos no Sinai e Damasco como o paraíso terrestre para as tribos que só podiam entrar nela depois de semanas e semanas de penosas marchas através do quartzo dessa ponte do deserto, depois de dias através do rutilante Houl, no pleno remoinhar das tempestades de areia”.
Damasco, finalmente. Cidade santa. Ponto de partida para Meca. E seus peregrinos – vindos das partes mais remotas da Líbia e da Tanzânia, do Egito e do Marrocos, da Pérsia e do Sudão – a visitar os túmulos de Hussein e de Fátima, antes da meta entressonhada, perdida nas areias. Mesmo do monte Qassium, onde por pouco se cumpriu o sacrifício de Isaac, Damasco parece fervilhar, com seus incontáveis minaretes, na meridiana claridade do deserto, que lhe emoldura o corpo, e cujos beduínos, hoje e outrora enamorados, sonhavam com as águas do Barada e seus jardins. Mas Lawrence desconhece tais sonhos.
Peregrino do nada, conquistado por cidades mais ou menos santas, visíveis ou intrigantes, Damasco é uma das mais sinuosas… Desejar-lhe as formas. Os segredos do corpo. Caminhar pelas ruas esquecidas. Jogos de acaso e previsão. Conhecer-lhe as partes sensíveis. Flores, incensos, especiarias. Saber que se trata desta, e não de outra cidade. Desta, e não de outra mulher.
Damasco abraça o amante da solidão, das altitudes esquecidas do deserto, e o devolve para a vida, nas cores fortes dos tapetes, turbantes caucasianos, do branco imaculado de outros príncipes. Deixar-se ficar um bom tempo desadquirindo solidão, abandonando tanto nomadismo, para sentir-se de perto o cheiro e o gosto dessas ruas, descer das altitudes da solidão – das certezas glaciais – e voltar a inserir-se no mundo, entre a gente simples, para quem Damasco não passa de remota possibilidade.
Tudo encanta. Tudo fascina em Damasco. Seus atrevimentos e delicadezas. Seu corpo. As fontes que dessedentam. A planta dos pés. Os olhos verdes do islã. Os seios alaranjados do Beka. Amar a cidade ao anoitecer, quando se pode surpreender em sua nudez, a mesquita de Al-Ualid ao fundo, abrindo as portas, durante a madrugada, enquanto espera a mulher do Dia do Juízo, e o áspero combate de Jesus. Como é bela Damasco… Seus lábios, poços de águas claras. Seus olhos, bálsamos de redenção.
Mas para Lawrence tudo isso jamais se concretizou. A solidão foi maior. E parecia arrastá-lo em suas tenazes de fogo. O deserto com seus horizontes, definitivamente perdidos, era a sua casa permanente. Deserto e Contradeserto. Os pilares e a sabedoria. Onde moram?
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